sexta-feira, 30 de abril de 2010

A MORTE DE IVAN ILITCH

«X

Passaram-se mais duas semanas. Ivan Ilitch já não se levantava do sofá. Não queria estar deitado na cama e ficava no sofá. E quase sempre deitado com a cara voltada para a parede, sofria em solidão sempre os mesmos padecimentos insolúveis e sozinho pensava o mesmo pensamento insolúvel. O que é isto? Será na verdadade a morte? E a voz interior respondia: sim, é verdade. Porquê estes sofrimentos? E a voz respondia: por nada, é assim. E para além disto não havia mais nada.
Desde o início da doença, desde que Ivan Ilitch consultara pela primeira vez o médico, a sua vida dividia-se em dois estados de espírito opostos, que alternavam: ou o desespero e a espera da morte incompreensível e horrenda, ou a esperança e uma observação interessada do funcionamento do seu corpo. Ora tinha diante dos olhos um rim ou o apêndice que temporariamente se recusava a cumprir as suas obrigações, ora a morte incompreensível e horrenda, à qual não havia maneira de escapar.
Estes dois estados de espírito sucediam-se um ao outro desde o início da doença; mas quanto mais a doença avançava mais duvidosas e fantásticas se tornavam as considerações sobre o rim e mais real a consciência da morte que se aproximava.
Bastava-lhe recordar aquilo que fora três meses antes e o que era agora; recordar com que regularidade descera a montanha, para que se desfizesse qualquer possibilidade de esperança.
Nos últimos tempos a solidão em que se encontrava deitado com o rosto para as costas do sofá, essa solidão no meio de uma cidade populosa e dos seus numerosos conhecidos e da família - uma solidão que não podia haver maior em parte alguma: nem no fundo do mar nem em terra -, nos últimos tempos dessa horrrível solidão vivia apenas com a imaginação no passado. Os quadros do seu passado surgiam-lhe um após o outro. Começava sempre por aquilo que era mais próximo no tempo, descia à infância e aí parava. Se Ivan Ilitch se lembrava das ameixas secas cozidas que lhe tinham servido naquele dia, recordava as ameixas francesas húmidas e rugosas da infância, o seu sabor especial e a abundante saliva quando chegava aos caroços, e a par dessa recordação do sabor toda uma série de recordações desse tempo: a ama, o irmão, os brinquedos. «Não devo pensar nisso... é demasiado doloroso», dizia a si mesmo e voltava para o presente. Um botão nas costas do sofá e as rugas do marroquim. «O marroquim é caro, mas pouco resistente; a querela foi por causa dele. Mas era outro marroquim, e outra disputa, quando rasgámos a pasta do pai e fomos castigados e a mamã nos levou pastéis.» E de novo parava na infância, e de novo era doloroso e Ivan Ilitch procurava expulsar esses pensamentos e pensar noutra coisa.
E de novo, junto com essa torrente de recordações, outra torrente de recordações passava na sua mente - sobre como a sua doença se agravava e aumentava. Também aqui, quanto mais ele recuava mais vida havia. Havia mais coisas boas na vida e a própria vida era mais. Uma e outra coisa fundiam-se. «Tal como os tormentos vão sendo cada vez piores, também toda a minha vida ia sendo cada vez pior», pensava. Um ponto luminoso lá atrás, no princípio da vida, e depois tudo é cada vez mais negro e passa cada vez mais depressa. «Na razão proporcionalmente inversa à distância da morte», pensou Ivan Ilitch. E aquela imagem da pedra que caía com crescente velocidade gravou-se-lhe na alma. A vida, uma fila de sofrimentos cada vez maiores, voa cada vez mais depressa para o fim, para o mais horrível sofrimento. «Estou a voar...» Estremeceu, agitou-se, quis resistir; mas já sabia que era impossível resistir e de novo, com os olhos cansados de olhar mas incapazes de não olhar para aquilo que estava à sua frente, ficou a olhar para as costas do sofá e esperou - esperou essa horrível queda, o choque e a destruição. «É impossível resistir», dizia a si mesmo. «Mas se pudesse ao menos compreender para quê isto? Mas também isso é impossível. Seria possível explicar se pudesse dizer que não vivi como devia. Mas isso é impossível aceitar», dizia a si mesmo, recordando toda a legalidade, toda a correcção e a decência da sua vida. «Isso é impossível de admitir», dizia a si mesmo rindo-se com os lábios, como se alguém pudesse ver aquele seu sorriso e ser enganado por ele. «Não há explicação! Sofrimento, morte... Porquê?»

Lev Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch, Leya (BIS), 2008

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A MORTE DE IVAN ILITCH

No início de 2009, numa livraria, deparei-me com o livro "A Morte de Ivan Ilitch", de Lev Tolstoi, que, na capa, aludia ao "prefácio de António lobo Antunes".
Li o prefácio, com menos de uma página:

"Este livro tão breve, uma das maiores obras-primas do espírito humano, tem sido, desde a sua publicação, um motivo de controvérsia para a crítica: trata-se de uma obra sobre a morte ou de uma obra que nega a morte? (...) a morte de Ivan Ilitch é ambas as coisas e transcende tudo isso, para se tornar o retrato implacável da nossa condição: não há sentimento que nele não figure, não há emoção que não esteja presente. Tudo o que somos se acha em poucas páginas, escrito de uma forma magistral. Li-as, maravilhado, umas vinte ou trinta vezes, continuarei a lê-las, maravilhado, até ao fim dos meus dias. Maravilhado, exaltado, comovido, a perguntar-me como é que ele conseguiu. E conseguiu."

Comprei imediatamente o livro.

Porém, por razões diversas, não o li logo.

No dia 30 de Junho de 2009 assisti, na Faculdade de Letras de Lisboa, à sessão de encerramento da jornada comemorativa dos 30 anos da publicação de "Memória de Elefante", de António Lobo Antunes.

Essa secção consistiu num diálogo de António Lobo Antunes com Eduardo Lourenço e com o público.

Nessa ocasião, Eduardo Lourenço referiu que não se é o mesmo depois de ler "A Morte de Ivan Ilitch".

Comecei a lê-lo no dia seguinte.

Já tinha lido grandes livros, já tinha lido livros que "foram escritos para mim", mas pela primeira vez senti que estava a ler um livro "sobre mim", "sobre nós".

Pormenor curioso: acabei de lê-lo com a idade com que Ivan Ilitch morreu.

Já o li duas vezes, por inteiro, e, alguns excertos, mais vezes.

Nas próximas três mensagens publicarei os últimos três capítulos do livro, de uma beleza inesquecível.

(Por falar do final do livro, veio-me à memória outro final fabuloso - o de "Os Maias").

quinta-feira, 1 de abril de 2010

GISELLE

No dia 19 de Dezembro de 2009 assisti, no Teatro Camões, ao bailado "Giselle", apresentado pela Companhia Nacional de Bailado, com coreografia de Georges Garcia, a participação da Orquestra Sinfónica Portuguesa e a direcção musical de Geoffrey Styles.
O primeiro bailado a que assisti.
Gostei muito.
Bailado romântico (1841) , com música, belíssima, de Adolphe Adam.
Em dois actos.
O primeiro, em frente à casa de Giselle, numa aldeia junto ao Reno.
A jovem camponesa Giselle (Barbora Hruskova) e Loys (Filipe Portugal) apaixonam-se. Giselle desconhece que Loys é, na realidade, um homem de outra condição social: o Duque da Silésia, de nome Albrecht. No fim do primeiro acto, Hilarion (que ama Giselle) desmascara Loys perante Giselle e Bathilde, noiva de Albrecht. Giselle enlouquece e dança tragicamente, até morrer.
O segundo acto decorre no reino das wilis, na floresta.
As wilis são espíritos de mulheres que morreram por amor e que, durante a noite, se vingam dos seus amados, fazendo-os dançar até à morte. Myrtha, a rainha das wilis, juntamente com outras wilis, executam uma dança de recepção à recém falecida Giselle. Hilarion, arrependido junto ao túmulo de Giselle, não resiste ao feitiço das sedutoras wilis, que o arrastam para uma dança mortal. Surge Albrecht, que deposita um ramo de lírios brancos junto ao túmulo de Giselle. Esta, agora uma wili, levanta-se do túmulo e dança com Albrecht, que tenta resisitir à exaustão. Giselle (que teria motivos para condenar Albrecht) salva-o da perigosa atracção de Myrtha, até que o romper da aurora faz dissipar o feitiço das wilis e Giselle volta para o túmulo, lançando um último adeus ao seu amado, que sobrevive mas fica só.
Alguns dias depois, comprei um DVD com o bailado - do American Ballet Theatre, com a participação da Orchester der Deutschen Oper Berlin - e um CD com a música de Adolphe Adam, interpretada pela Slovak Radio Symphony Orchestra.
Pela primeira vez também, descobri que a música pode contar uma história.