Uma excelente crónica, escrita por Ricardo Araújo Pereira e publicada na revista VISÃO de 31 de maio de 2012.
Acreditemos no poder das palavras!
Esperança gramatical
E quando o leitor pensava que já tinha
ouvido tudo acerca da crise, de repente fica a saber que, gramaticalmente, é
muito difícil que Portugal vá à falência. E, enquanto for gramaticalmente
impossível, eu acredito. Justifico esta ideia com a seguinte teoria fascinante:
normalmente, considera-se que o verbo falir é defectivo.
Significa isto que lhe faltam algumas pessoas, designadamente a primeira,
a segunda e a terceira do singular, e a terceira do plural do presente do
indicativo, e todas as do presente do conjuntivo. Não se diz «eu falo», «tu
fales», nem «ele fale». Não se diz «eles falem». Todos os modos e tempos
verbais do verbo falir se admitem, com excepção de quatro pessoas do presente
do indicativo e todo o presente do conjuntivo. Em que medida é que isto são
boas notícias? O facto de o verbo falir ser defectivo faz com que, no
presente, nenhum português possa falir. Não é possível falir, presentemente, em
Portugal. «Eu falo» é uma declaração ilegítima. Podemos aventar a hipótese de
vir a falir, porque «eu falirei» é uma forma aceitável do verbo falir. E
quem já tiver falido não tem salvação, porque também é
perfeitamente legítimo afirmar: «eu fali». Mas ninguém pode dizer que,
neste momento, «fale».
Acaba por ser justo que o verbo falir
registe estas falências na conjugação. Justo e útil, sobretudo em tempos de
crise. Basta que os portugueses vivam no presente - que, além do mais, é dos
melhores tempos para se viver - para que não «falam» (outra conjugação impossível).
Não deixa de ser misterioso que a língua portuguesa permita que, no passado, se
possa ter falido, e até que se possa vir a falir, no futuro, ao mesmo tempo
que inviabiliza que se «fala», no presente.
Se eu nunca «falo», como posso ter
falido? Se ninguém «fale», porquê antever que alguém falirá? Talvez a
explicação esteja nos negócios de import/export. Nas outras línguas, é possível
falir no presente, pelo que os portugueses que têm negócios com estrangeiros
podem ver-se na iminência de falir. Mas basta que os portugueses não falem (do
verbo falar, não do verbo falir) acerca de negócios com estrangeiros para
que não «falam» (do verbo falir, não do verbo falar). Eu tenho esse cuidado, e
por isso não falo (do verbo falir e do verbo falar).
Bem sei que o prof. Rodrigo Sá Nogueira,
assim como outros linguistas, se opõe a que o verbo falir seja considerado
defectivo. Mas essa é uma posição que tem de se considerar antipatriótica. É
altura de a gramática se submeter à economia. Tudo o resto já se submeteu.