segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

P. ALFREDO DINIS, SJ






O Padre jesuíta Alfredo Dinis nasceu em Tramagal, em 1952, e faleceu em 2013, em Braga.

Licenciado em Filosofia e Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa.

Licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma.

Mestre e doutor em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Cambridge.

Professor e director da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa.

Foi ordenado, em 2 de julho de 1983, numa missa campal em Tramagal.

Cruzámo-nos meia dúzia de vezes, em Tramagal, nalgumas eucaristias que concelebrou ou nos cafés, por altura das festas de Nossa Senhora da Oliveira, padroeira de Tramagal, tendo trocado simples palavras de circunstância.

Há alguns anos, numa visita à FNAC, descobri o livro "Educação, Ciência e Religião", da autoria do Padre Alfredo Dinis e de João Paiva.





Trata-se de um livro fundamentalmente sobre a relação entre a ciência e a religião, ao longo da história: como se relaciona a religião com a teoria do Big Bang, a evolução das espécies, as questões ambientais, e os desenvolvimentos mais recentes da mecânica quântica, da inteligência artificial e das neurociências?

De seguida, alguns excertos:

"O Deus a quem os cristãos dão crédito é a explicação última do universo e da vida, mas respeita a autonomia e a liberdade dos seres que criou. Não faz tudo porque toma a sério a nossa liberdade. Criou um universo em evolução e respeita a autonomia das suas leis e processos. Saberá tudo? Não saberá senão o que se pode saber? Saberá como vou decidir viver a minha vida nos próximos tempos? Espera para ver e respeita as decisões que eu tomar. A sua omnisciência, a sua perfeição, está mais no serviço do que no poder.
(...)
Deus tem mais a ver com a sabedoria do que com o saber.
(...)
A Bíblia tem um carácter não apenas histórico mas também sapiencial, contendo uma sabedoria de vida mais do que um saber sobre factos.
(...)
Assim como o poeta Camões escreveu que «o amor é um fogo que arde se se ver» e ninguém apaixonado imagina que dentro de si se inicia uma combustão viva e invisível, também a descrição simbólica de Adão e Eva não deve merecer uma leitura literal e descontextualizada do texto bíblico.
Aquele quadro bíblico alude com toda a certeza à crença judaica de que a criação do universo e da vida têm a sua justificação última em Deus, que no seu infinito amor criou (e continua a criar) o universo e a Humanidade. Exprime também a ideia de que a nossa espécie tende a ser «auto-suficiente» e a virar as costas ao Deus-Amor que a criou. Adão e Eva simbolizam toda a humanidade. «Comer a maçã» representa prescindir de Deus e bastar-se a si próprio na compreensão do mundo e do sentido da vida. Comer ou não comer a maçã é ainda, neste sentido, o verdadeiro jogo da liberdade do homem, a tensão de possuir, que é o contrário de se oferecer, de confiar, de se entregar. É este o seu pecado original, isto é, o seu pecado mais profundo.
(...)
Também o teólogo Karl Rahner (1965), jesuíta alemão, escreveu e publicou importantes reflexões sobre estas questões. Para ele, se acolhermos a teoria da evolução das espécies, aceite pela Igreja Católica, Adão e Eva não constituem o casal original do qual descende historicamente toda a Humanidade: eles representam toda a Humanidade. Além disso, o paraíso terrestre não tem de ter existido forçosamente no tempo passado, mas pode ser identificado com a utopia cristã dos novos céus e da nova terra, que só será realidade no final dos tempos. O pecado original não corresponde a qualquer transgressão real das leis de Deus cometida por Adão e Eva, mas refere-se à radical liberdade que cada ser humano tem de dizer um não definitivo a Deus no mais íntimo de si mesmo, liberdade que é tanto de cada ser humano como da comunidade em que vive e, finalmente, de toda a Humanidade.
(...)
Sobre o início da Humanidade, Joseph Ratzinger procura uma explicação com base numa relação dialogal: «A argila tornou-se ser humano no momento em que uma criatura, pela primeira vez, mesmo que de forma muito velada, foi capaz de formar uma ideia de Deus. O primeiro tu que o ser humano - por mais balbuciado que fosse - dirigiu a Deus é o momento em que o espírito se levantou no mundo. Aqui foi ultrapassado o rubicão da criação humana».
(...)
A afirmação de que Deus criou o mundo, afirmação comum ao cristianismo e a outras religiões, não pretende ser uma afirmação científica, no sentido em que esta expressão é hoje entendida. Quererá isto dizer que as explicações científicas e religiosas do mundo são radicalmente diversas, mesmo opostas? A dificuldade em responder a esta questão reside no facto de, por um lado, parecer conveniente distinguir as explicações científicas e religiosas do mundo e, por outro, parecer inconveniente criar um tal dualismo epistemológico que possa ser interpretado como um dualismo ontológico. O aforismo filosófico segundo o qual «distinguir não é separar» é a este propósito muito elucidativo.  
(...)
Um Deus que se inventa? Admitamos que sim... A experiência da fé, muitas vezes, é viver como se esse Deus (inventado?) existisse e ir descobrindo que, afinal, existe mesmo...
(...)
Por outro lado, será necessário rever o vocabulário utilizado nos discursos filosófico e científico tradicionais. Dualismos substancialistas como matéria/espírito, imanência/transcendência, corpo/alma, natural/sobrenatural, bem como as estruturas metafísicas que lhes correspondem, necessitam de uma revisão profunda.
(...)
A corporização das emoções lança alguns desafios à teologia. A alma e o espírito, neste alinhamento, são resultado, de facto, de todas as interacções fisiológicas que o nosso organismo desenvolve e que se efectuam, principalmente, no cérebro. Para o próprio Damásio e para os adeptos da neurobiologia, esta «fisiologização do espírito» não representa qualquer problema. Saber que o amor tem uma sede cerebral não invalida a sua relevância e vitalidade. E a perspectiva de Damásio - entender um cenário material das emoções - não reduz, aliás, a complexidade destas.
Desta verificação até à determinação das relações causa/efeito de toda a emocionalidade vai um passo de gigante. A previsibilidade humana parece não estar escrutinada, nem tão-pouco se lhe augura futuro. Somos seres de relação e teríamos de somar à complexidade da emocionalidade de um ser humano as complexidades dos inúmeros outros seres humanos com quem nos relacionamos. A alma, porventura e sem complexos «incorporada», estará para durar. Talvez os estudos de Damásio e outros equivalentes «empurrem» a teologia para não dicotomizar o corpo e a alma." 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

PERIGOSIDADES


O que é mais perigoso?

A ignorância ou os conhecimentos errados?


domingo, 3 de dezembro de 2017

A NOTÍCIA DAS NOTÍCIAS


Tornou-se possível ultrapassar, em muito, a velocidade da luz.

De tal forma que será possível, facilmente, demorando pouco tempo, atingir locais distantíssimos da Terra - tão distantes que ainda não chegaram lá, à velocidade da luz, as imagens da formação do universo (e todas as outras subsequentes).

Será possível agora, colocando câmaras registadoras em diversos pontos estratégicos do universo, captar a evolução do universo e da história humana, desde os tempos mais recuados até aos nossos dias.

Num só ano poder-se-ão registar, em milhares de milhões de câmaras, as imagens correspondentes ao primeiro ano do universo e a todos os anos seguintes - em câmaras mais longínquas, os primeiros anos; em câmaras sucessivamente mais próximas, todos os outros anos, até hoje.

sábado, 30 de setembro de 2017

AMADEU FERREIRA

Na década de 80, quando estudante na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ouvi falar de um estudante da noite, consideravelmente mais velho que eu, que era muito bom aluno e facultava cópias dos seus apontamentos manuscritos na secção de folhas da Associação Académica.

Estudei Direito Penal por essas cópias, mas não o conheci pessoalmente. Os apontamentos eram excelentes, desde a respectiva clareza até à legibilidade da caligrafia.

Outros colegas gravavam as aulas, desgravavam-nas e davam-lhe o texto em bruto, que ele depois organizava, daí resultando um texto por ele manuscrito com mais de meio milhar de páginas, que ele entregava na Associação Académica, onde eram fotocopiadas para toda a gente. Centenas de alunos estudaram por essa sebenta.

Naquela sebenta manuscrita o seu nome não aparece; apenas surge o nome do regente (Dr. Rui Pereira, mais tarde Ministro da Administração Interna).

Foi o melhor aluno do seu curso (1985-1990), apresentou no concurso para assistente estagiário um estudo sobre o homicídio privilegiado (1990) e, em 1995, discutiu a dissertação de mestrado intitulada "Valores Mobiliários Escriturais - um novo modo de representação e circulação de direitos". Entretanto, tinha começado a trabalhar na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).

Em pouco tempo passou de assistente de Direito Penal a regente de Direito dos Valores Mobiliários e foi admitido à preparação da dissertação de doutoramento, que porém suspendeu devido à nomeação para o Conselho Directivo da CMVM.




Natural de Sendim, a partir dos finais dos anos noventa dedicou-se também intensamente à defesa e promoção da língua e cultura mirandesas.

Publicou em mirandês, em seu nome e de vários pseudónimos, os mais diversos géneros literários (romance, conto, teatro, poesia) e traduções.

Traduziu para mirandês, entre outros, dois livros de Astérix, "Os Quatro Evangelhos - Ls Quatro Eibangeillos", e, sob o pseudónimo de Fracisco Niebro, "Os Lusíadas - Ls Lusíadas" e a "Mensagem - Mensaige"de Fernando Pessoa.

Foi Presidente da Associaçon de Lhéngua i Cultura Mirandesa e da Academia de Letras de Trás-os-Montes.

Morreu em 2015, com 64 anos. Quatro dias depois da morte foram lançados a sua biografia, "O Fio das Lembranças", de Teresa Martins Marques, e o seu mais recente livro, "Belheç - Velhice", sob o pseudónimo Fracisco Niebro.



Ao ler a sua biografia, descobri que frequentou o seminário entre 1961 e 1972 (de onde foi expulso), participou enquanto militar no 25 de Abril e no 25 de Novembro, e foi fundador e deputado da UDP (tendo feito uma única intervenção no Parlamento, na reunião plenária de 14 de Julho de 1982).

Para terminar, um excerto do livro "Belheç - Velhice", em edição bilingue:

"Há um tempo para nascer e um tempo para morrer.
A alma não pode voar para o céu. Se assim fosse, como podiam nascer coisas novas? Essa é a ressurreição das almas: são vidas novas. São bichinhos, ervinhas e tudo o que vive.
É por isso que fazem mal em sepultar as pessoas no cemitério: deviam enterrá-las pelos campos para ajudar as almas a nascer. Assim, Deus, seja lá ele quem for, tem muito mais trabalho."

" Hai un tiempo para nacer i un tiempo para un se morrer.
L'alma nun puode bolar pa l cielo. Senó, cumo podien nacer cousas nuobas? Essa ye la rucerreiçon de las almas: son bidas nuobas. Son bichicos, arbicas i todo l que bibe.
Ye por esso que fázen mui mal an anterrar las pessonas ne l semitério: habien de las anterrar pul campo para ajudar las almas a nacer. Assi, Dius, seia quien fur, ten muito mais trabalho."

domingo, 17 de setembro de 2017

EPC


Foi um dos intelectuais que marcaram a minha formação.

"Conheci-o" como cronista em O Jornal, como um dos três membros do conselho editorial e colaborador do Jornal de Letras, Artes e Ideias, como crítico de cinema e colaborador no EXPRESSO, como ensaísta (A Noite do Mundo, O Cálculo das Sombras), como escritor do diário Tudo o que não escrevi, como cronista diário no jornal Público com O Fio do Horizonte.

Fez no dia 25 de agosto dez anos que morreu Eduardo Prado Coelho.


                                                    1944 - 2007


Transcrevo o final do primeiro volume do diário Tudo o que não escrevi:


Paris - 28.2.92

(...) Tantas vezes vimos no cinema que até se tornou banal: alguém escorrega para o abismo, em baixo o vale rochoso, o desfiladeiro, o lago das piranhas, o poço eriçado de cobras, a caixa negra do ascensor, e a mão sobrevivente pede a derradeira ajuda. Mais difícil é vivê-lo. Já o meu pai estava doente, definitivamente doente, e conversávamos um dia junto à janela do escritório. Em frente, Monsanto, o jardim da Companhia das Águas, relva, arvoredo. E o meu pai disse: "Venho muitas vezes olhar aquela árvore. Ela dá-me um sentimento de paz." Essa árvore, serena, frondosa, esplêndida, exuberante, passou a ser a morte do meu pai - a sua face diurna. Porque houve outra voltada para o abismo, a mais terrível. O meu pai perguntava por que razão não o levavam a Londres, a mão pedindo que o salvassem. Fui obrigado a dizer-lhe, em nome do médico, que não valia a pena. Mas como é que uma coisa não vale a pena se há uma árvore em frente a rebentar de pássaros verdes? A mão ficou abandonada sobre o lençol, o olhar distraiu-se. Ao regressar a casa, conduzia numa espécie de levitação, guiado apenas pela luz das lágrimas. Nesses tempos, ele lia as Confissões de Santo Agostinho, e as palavras começavam-lhe a ficar inclinadas, trôpegas, desobedientes. Não tenho medo da minha morte, entendes?, mas da morte da árvore, um dia.

                                      "Open then, mine eyes, your double sluice, 
                                      And practise so your noblest use;
                                      For others too can see, or sleep,
                                      But only human eyes can weep.
                                      (...)
                                      Thus let your streams o'erflow your springs,
                                      Till eyes and tears be the same things:
                                      And each the others's difference bears:
                                      This weeping eyes, those seeing tears"

                                                                           ANDREW MARVELL


Paris - 29.2.92

Afinal Miguel Strogoff não era, nunca tinha sido cego. Um fenómeno puramente humano, ao mesmo tempo psíquico e físico, tinha neutralizado a acção da lâmina incandescente que o executor de Feofar havia feito passar diante dos seus olhos.
Lembram-se de que, no momento do suplício, Marfa Strogoff estava lá, estendendo as mãos em direcção ao seu filho. Miguel Strogoff olhava-a como um filho pode olhar a sua mãe, quando é pela última vez. Explodindo em vagas do seu coração para os olhos, as lágrimas, que o seu orgulho tentava em vão reter, acumulavam-se sob as pálpebras, e, volatizando-se na córnea, tinham-lhe salvo a vista. A camada de vapor formada pelas suas lágrimas, interpondo-se entre o sabre ardente e as pupilas, bastara para aniquilar a acção do calor.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

AUGUSTO ABELAIRA, TRADUTOR


Augusto Abelaira, além de escritor e jornalista, foi, também, professor e tradutor.

Em 2014 (ou 2015), passeando na Avenida Dom Carlos I, entrei na livraria da Sociedade Guilherme Cossoul e encontrei "O Doutor Jivago", de Boris Pasternak, com tradução de Augusto Abelaira, prefácio de Aquilino Ribeiro e tradução das poesias de David Mourão-Ferreira!!!



segunda-feira, 7 de agosto de 2017

OBRAS DE AUGUSTO ABELAIRA


Desde SEM TECTO ENTRE RUÍNAS, que adquiri em 1979, comprei todas as primeiras edições dos subsequentes livros de Augusto Abelaira (com excepção de ANFITRIÃO OUTRA VEZ, de 1980).

Simultaneamente, fui comprando livros anteriores, em edições antigas ou que foram sendo reeditados. 

Em 2014 tentei e atingi o objectivo de ter as primeiras edições de todas as obras de Augusto Abelaira, de 1959 a 2004 (com a ajuda de alguns alfarrabistas, entre os quais o Adelino Correia Pires).



















segunda-feira, 17 de julho de 2017

NO CAFÉ


A: Por que razão, muitas vezes, a propósito de um livro ou de um filme, se ouve, em tom elogioso, que se baseia em factos reais?

B: Será porque desejamos ficções realistas ou porque ambicionamos ficção nas nossas vidas?

domingo, 9 de julho de 2017

HOMENAGEM A CARLOS DE OLIVEIRA


Na sequência da mensagem anterior, recordei-me de uma edição da revista Vértice, dedicada a Carlos de Oliveira, em 1982, ano do 40.º aniversário da revista e da publicação do primeiro livro do autor.

Comprei a revista em fevereiro de 1983, na livraria Académica, em Abrantes.




A revista, publicada no ano seguinte ao da morte do autor, continha evocações e testemunhos (entre outros, de Fernando Namora, Cardoso Pires e Urbano Tavares Rodrigues), estudos e ensaios (entre outros, de Alexandre Pinheiro Torres, José Manuel Mendes, Teresa Coelho Lopes e Vital Moreira), inéditos do autor e uma biobibliografia.

Tinha também uma homenagem poética com poemas de diversos poetas, de onde destaco os escritos por Mário Dionísio e José Gomes Ferreira:


POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO

                                                                              (1 de Julho de 1981: morte do Carlos de Oliveira)
                      
                         É hoje o primeiro dia
                         em que há mundo sem ti

                         Esforço-me por entender o sem sentido disto

                        Mas não se pensa o que se chora
                        Espanto-me sim de esta cidade para mim vazia
                        ser para os outros como sempre a vi 

                        Que pode haver agora?
                        Que enganosa miragem?
                        Tu não foste fazer uma viagem
                        Tua ausência não é um intervalo

                        Vai-se indo pouco a pouco o porque existo
                        E nunca mais também sem ti
                        saberei sequer reinventá-lo (*)

                                                                                    MÁRIO DIONÍSIO

(*) Incluído no livro Terceira Idade (poema LXXIII)


POEMA DE JOSÉ GOMES FERREIRA

LÁPIDE
para Carlos de Oliveira


                          Havia na tua Voz a suspeita
                          de um sonho que se deita
                          no sono da realidade
                          - para tornar a verdade
                          mais inverídica perfeita.

                           Não foste como os outros, Poeta,
                           um simples buscador de beleza,
                           mas alguém que o sol completa
                           com o rigor da sombra acesa.

                           Julho 1981

                                                                            JOSÉ GOMES FERREIRA 

sexta-feira, 30 de junho de 2017

CARLOS DE OLIVEIRA: A PARTE SUBMERSA DO ICEBERG


Decorre desde 18 de março até 29 de outubro, no Museu do Neo-realismo, em Vila Franca de Xira, uma exposição intitulada "CARLOS DE OLIVEIRA: a parte submersa do iceberg", cujo curador é o Prof. Doutor Osvaldo Manuel Silvestre.

Nessa exposição se demonstra que a parte visível do iceberg (a sua obra) tem uma parte submersa extraordinariamente importante e que é revelada por vasta documentação saída do espólio doado por Ângela Oliveira (sua mulher, falecida em 2016) ao Museu do Neo-realismo.

Escreve Osvaldo Manuel Silvestre, em texto publicado na revista Colóquio Letras adiante citada, a propósito do processo criativo de Carlos de Oliveira, que "o espólio revela que o processo, quando completo, percorre as seguintes fases: (i) produção de manuscrito; (ii) versão dactiloscrita do manuscrito (em rigor, versões); (iii) correção sobre o dactiloscrito; (iv) produção de provas tipográficas e correções escritas sobre elas; (v) produção do livro e reescrita sobre o texto do livro impresso." As versões dactiloscritas eram normalmente da responsabilidade de Ângela de Oliveira.

Este projecto expositivo tem associado um programa complementar com iniciativas que decorrem no Museu do Neo-Realismo, na Casa da Escrita em Coimbra, na Casa Fernando Pessoa em Lisboa e na Biblioteca Municipal de Cantanhede.

Por outro lado, foram publicados o catálogo da exposição (com alguns estudos e documentação do espólio) e um livro dedicado a Ângela de Oliveira (sugestivamente com o título de um dos poemas de Carlos de Oliveira e com textos, entre outros, de Gastão Cruz, José Carlos de Vasconcelos, José Fernandes Fafe, José Manuel Mendes, Manuel Gusmão, Margarida Gil, Nuno Júdice e Osvaldo Manuel Silvestre). 








Também a revista Colóquio Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, dedicou o número 195 a Carlos de Oliveira.

De seguida, algumas fotografias da exposição:



Manuscrito de Finisterra.



Finisterra: o original enviado para a tipografia, as emendas para a 2ª edição (a vermelho), as emendas para a 3ª edição (a verde) e as emendas para a 4ª edição (a castanho).



Uma Abelha na Chuva: reescrita sobre o texto do livro impresso.



Retrato de Carlos de Oliveira, por Nikias Skapinakis



Retrato de Ângela, por Gilbey




quinta-feira, 15 de junho de 2017

THE BEST ANSWER


Sometimes the best answer it's to say that sometimes the best answer it's to be quiet.



quinta-feira, 18 de maio de 2017

OS JORNAIS


Os jornais foram importantíssimos para mim.
No verão de 1979, comecei a ler os jornais que o meu irmão, Octávio Félix de Oliveira, já estudante universitário, ia acumulando durante o ano.
Foi então que conheci os semanários O Jornal e o EXPRESSO.
Pouco mais tarde, a partir de 1981, acompanhei, desde o nascimento, o JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias.
Estes três jornais alicerçaram muita da minha formação política, económica e cultural.


                                                                        Nº 1 d' O JORNAL, em 2 de maio de 1975

 O Jornal recordo, por exemplo, a publicação em duas edições consecutivas, nas páginas centrais, da última entrevista de Sartre.
O Jornal  foi um projecto inovador: era um jornal propriedade dos próprios jornalistas.
Lembro-me de nomes como José Carlos de Vasconcelos, Fernando Assis Pacheco, Cáceres Monteiro, Afonso Praça, Manuel Beça Múrias, Carneiro Jacinto, Francisco Vale (hoje editor da Relógio d´Água), das análises económicas de Daniel Amaral e das crónicas semanais de Augusto Abelaira, intituladas Escrever na Água.
O projecto d´ O Jornal (Publicações Projornal) foi-se expandindo com a criação do jornal Sete, da revista HISTÓRIA, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, d´O Jornal da Educação, do jornal humorístico Bisnau e da editora O Jornal, que viria a editar escritores como Augusto Abelaira e José Cardoso Pires (se bem me lembro, o primeiro livro editado foi, em 1982, Balada da Praia dos Cães, de Cardoso Pires, que viria a vencer o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, no ano em que foi publicado o Memorial do Convento).
O Jornal deixou de se publicar, salvo erro, no final de 1992, e o único título que se manteve até hoje, ininterruptamente, foi o JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias.


                                                                    Nº 1 do EXPRESSO,  em 6 de janeiro de 1973

Do EXPRESSO recordo a análise política da página 2 de Marcelo Rebelo de Sousa e a criação da Revista que, na década de 80, atingiu um nível sueperlativo. Na Revista de então era possível, semanalmente, ler as críticas de cinema de João Lopes, Vicente Jorge Silva, Eduardo Prado Coelho e Augusto M. Seabra!!! Lembro-me também de na mesma Revista ler grandes entrevistas, entre outros, a Karl Popper (por João Carlos Espada) e a Jurgen Habermas (por Clara Ferreira Alves).


                                                                              Nº 1 do JL, em 3 de março de 1981

JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias foi desde o início (e até hoje) dirigido por José Carlos de Vasconcelos. Nos primeiros anos teve um conselho editorial composto por Auguto Abelaira, Eduardo Prado Coelho e Fernando Assis Pacheco. Pouco mais tarde teve como chefe de redacção António Mega Ferreira. E teve como jornalistas Clara Ferreira Alves e (em início de carreira) Ricardo Araújo Pereira. Recordo as crónicas de Augusto Abelaira (Ao pé das letras), Agustina Bessa-Luís e José Sesinando (Escrituralismo), bem como as magníficas ilustrações de João Abel Manta. O JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias é um caso único de longevidade no mundo de língua portuguesa, no âmbito do jornalismo cultural.

sábado, 13 de maio de 2017

A VERDADE


"A verdade é uma relação. Como tal, cada um de nós recebe a verdade e expressa-a a partir do interior, de acordo com as suas próprias circunstâncas, cultura e situação na vida".

segunda-feira, 1 de maio de 2017

UMA ABELHA NA CHUVA









Foi o meu segundo romance; no 9.º ano; em 1979/80.
A partir daí, Carlos de Oliveira é um dos meus escritores.




Carlos de Oliveira faleceu com quase 60 anos, em 1 de julho de 1981. 
A sua obra são quatro romances - Casa na Duna (1943), Pequenos Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953) e Finisterra, Paisagem e Povoamento (1978) -, vários livros de poesia reunidos no final num único livro - Trabalho Poético (1976) - e um conjunto de crónicas e artigos compilados em O Aprendiz de Feiticeiro (1971).
O seu trabalho literário foi porém muito mais intenso do que a colheita aparenta. Carlos de Oliveira reescrevia  permanentemente os seus livros, os quais conheceram, por vezes, consideráveis alterações nas sucessivas edições.
Em O Aprendiz de Feiticeiro (1971), pode ler-se:
"Nós, escritores, trabalhamos com palavras. Não nos é lícito ignorar que podem ser uma arma de força terrível ou terrivelmente frágeis. Podem apoucar as verdades ou revelar-lhes os gumes mais finos e luminosos. O nosso ofício consiste em escolher as palavras, utilizá-las no momento exacto, atenuá-las, engrandecê-las, dominá-las. E o que são as palavras? Língua, linguagem, povo, oralidade, escrita, herança literária. A reestruturação da técnica narrativa ou poética tem de conhecer até ao pormenor a matéria de que se serve. Ou então a literatura é uma batata."  


Li Uma Abelha na Chuva mais três vezes, a última em janeiro.
Simplificando, diria que é uma "tragédia neo-realista": nela se conjugam elementos da tragédia, definidos por Aristóteles na Poética (século IV a.C.), com algumas das características do movimento neo-realista (século XX), embora Carlos de Oliveira tenha transcendido este movimento.

Transcrevo algumas passagens do romance, bem ilustrativas da beleza da escrita de Carlos de Oliveira:

"Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passo molengão; samarra com gola de rapousa; chapéu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empredrado. Tinha o seu quê de invulgar: o peso do tronco roliço arqueava-lhe as pernas, fazia-o bambolear como os patos: dava a impressão de aluir a cada passo. A respiração alterosa dificultava-lhe a marcha . Mesmo assim, galgara duas léguas de barrancos, lama, invernia. Grave assunto o trouxera decerto, penando nos atalhos gandareses, por aquele tempo dasabrido.
Havia sobre a vila, ao redor de todo o horizonte, um halo de luz branca que parecia o rebordo duma grande concha escurecendo gradualmente para o centro até se condensar num côncavo alto e tempestuoso. Ameaçava chover. O vento ia descoalhando as nuvens e abria caminho à grossa chuvada que a tarde esperava.
(...)
Fez-se o casamento no Montouro. Conseguia recordar ainda com uma agudeza incrível a onda de sentimentos contraditórios que a arrastara vagarosamente ao altar, a amarga obediência aos pais e o desejo de os ajudar, a curiosidade e o medo, o medo e um pouco de esperança; avançava pelo braço do pai, toda de branco, entre um múrmúrio de órgão e vozes sussuradas; sorria, mas dentro de si ia nascendo um grito, um grito sempre reprimido; a chuva caía, caía com certeza, no passado e agora.
(...)
Levantou-se e tomou o caminho de casa. Na lama onde ia afundando os passos fermentavam as folhas caídas de outubro, oiro conspurcado que os vermes devoravam. Sentiu um arrepio à ideia do seu corpo num desamparo, numa miséria daquelas.
À superfície da madrugada iam correndo sons ligeiros, apenas pressentidos. O distender imperceptível das plantas aliviadas do orvalho, o frémito leve de mil e um movimentos ignotos. A vida ínfima acordava. Depois, principiou o restolho fugidio dos coelhos no tojo, o primeiro e breve alvoroço das asas. Os galos cantavam já soprando a última névoa do amanhecer. Pela aldeia floria o rumor humano, de mistura com o fumo dos lares e o cheiro dos currais abertos. O dia chegava por fim. Olhando para tudo, entrevia apenas no palpitar da terra a intimidade decomposta, os sinais da destruição.
(...)
O reflexo trémulo das chamas batia-lhes no rosto e defigurava-os: os olhos do padre muito mais encovados, a cana do nariz mais torta e luzidia; as bochechas da D. Violante inchadas como se tivesse a boca cheia de ar; uma recôndita sensualidade nos lábios de D. Maria dos Prazeres; a palidez de Álvaro Silvestre a resvalar num amarelo de cidra e idiotia. A D. Cláudia, não: incorruptível, pura, a mesma; não lhe toca o lume (nem a sombra) que os deforma e se ela, alma de mel translúcido, escapa ao sortilégio é que a alma dos outros não tem a mesma transparência.
À primeira vista, o gosto da razão científica tão arreigado no seu espírito não se coadunava muito com deduções desta natureza. No entanto, pensando melhor, tais juízos partiam de argumentos alicerçados no real: manias, doenças, tiques psicológicos e morais, etc. Não eram construções à toa. De maneira nenhuma. Podia bem deduzir o seguinte sem se atraiçoar: vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros; todos eles fabricam fel; abelhas cegas, obcecadas.
(...)
A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas."


Trata-se de um romance com o qual dialogaram outras obras posteriores: não pude deixar de pensar nele quando li O Delfim (1968), de José Cardoso Pires, e A Sala Magenta (2008), de Mário de Carvalho.
Curiosamente, Fernando Lopes adaptou ao cinema Uma Abelha na Chuva e O Delfim.

Recomendo, a propósito, o seguinte programa, editado pela RTP:

http://ensina.rtp.pt/artigo/uma-abelha-na-chuva-de-carlos-de-oliveira/

domingo, 30 de abril de 2017

NO CAFÉ


B: Dantes pensava em guardar certos livros para ler quando fosse velho, para dourar a reforma.
A: Tinhas medo que os livros acabassem?
B: Não, mas preocupava-me com a qualidade da leitura futura.
A: E já não te procupas?
B: Preocupo, mas mudei a estratégia: agora procuro ler e descobrir livros que mereçam voltar a ser lidos.
A: Ler os mesmos livros?
B: Não: os bons livros mudam com o tempo, nunca são os mesmos. Mudam connosco.

segunda-feira, 20 de março de 2017

CONSTRUÇÃO


Por falar em construção e em operário, outro belo poema (e música).




Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina 
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO


"Descobri" Vinicius de Moraes em 1980, com a notícia da sua morte.

Claro que já ouvira a "Garota de Ipanema", mas desconhecia os seus criadores.






Nesse longínquo ano de 1980 fiquei estupefacto com "O Operário em Construção":


O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO

Rio de Janeiro, 1959

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. IV, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

FLORBELA


Em 1981 foi publicada a primeira edição do "Diário do último ano", de Florbela Espanca.

Foi escrito entre 11 de janeiro e 2 de dezembro de 1930, último ano de vida de Florbela, que se suicidou em 8 de dezembro.

Tratou-se de uma edição fac-similada, com prefácio de Natália Correia.




Transcrevo algumas passagens, por certo (parcialmente) diferentes das que teria escolhido quando, há 36 anos, o li pela primeira vez:    


JANEIRO 1930
11 - Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir - todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.
Foram-se, há muito, os vinte anos, a época das análises, das complicadas dissecações interiores. Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros...talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto.
Nas horas que se desagregam, que desfio entre os meus dedos parados, sou a que sabe sempre que horas são, que dia é, o que faz hoje, amanhã, depois. Não sinto deslizar o tempo através de mim, sou eu que deslizo através dele e sinto-me passar com a consciência nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir. Como compreender a amargura desta amargura? (...) «Attendre sans espérer» poderia ser a minha divisa, a divisa do meu tédio que ainda se dá ao prazer de fazer frases. 
(...)
21 - (...) Eu que tenho esgotado todas as sensações artísticas, sentimentais, intelectuais, todas as emoções que a minha poderosa imaginação de criaturinha fantástica e estranha tem sabido bordar no tecido incolor da minha vida medíocre, não esgotei ainda, graças aos deuses, o arrepio de prazer, o estremecimento de entusiasmo, este «élan» quase divino, para tudo o que é belo, grande e puro: flor a abrir ou tinta de crepúsculo, raminho de árvore, ou gota de chuva, cores, linhas, perfumes, asas, todas as belas coisas que me consolam do resto. (...)
(...)
23 - Endiabrada Bela! Estranha abelha que dos mais doces cálices só sabe extrair fel! «Para que quer esta criatura a inteligência, se não há meio de ser feliz?», dizia, dantes, meu pai, indignado. Ó ingénuo pai de 60 anos, quando é que tu viste servir a inteligência para tornar feliz alguém? Quando, ó ingénuo pai de 60 anos?... Só se pode ser feliz simplificando, simplificando sempre, arrancando, diminuindo, esmagando, reduzindo; e a inteligência cria em volta de nós um mar imenso de ondas, de espumas, de destroços no meio do qual somos depois o náufrago que se revolta, que se debate em vão, que não quer desaparecer sem estreitar de encontro ao peito qualquer coisa que anda longe: raio de sol ou reflexo de estrelas. E todos os astros moram lá no alto, ó ingénuo pai de 60 anos!
(...)
FEVEREIRO
(...)
23 - A vida tem a incoerência de um sonho. E quem sabe se realmente estaremos a dormir e a sonhar e acabaremos por despertar um dia? Será a esse despertar que os católicos chamam Deus?
(...)
ABRIL
20 - (…) Afinal, para que pensar? Viver é não saber que se vive. Procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurasténicos. Só uma visão de conjunto pode aproximar-se da verdade. Examinar em detalhe é criar novos detalhes. Por debaixo da cor está o desenho firme, e só se encontra o que se não procura. Porque me não esqueço eu de viver... para viver?
(...)
JULHO
16 - Até hoje, todas as minhas cartas de amor não são mais que a realização da minha necessidade de fazer frases. Se o «Prince Charmant» vier, que lhe direi eu de novo, de sincero, de verdadeiramente sentido? Tão pobres somos que as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verdade!
(…)
DEZEMBRO
2 - E não haver gestos novos nem palavras novas!


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

NO CAFÉ


A: Vive cada dia como se fosse o último!

B: Não. Vive cada dia como se fosse o primeiro. (Até porque o último pode não ser particularmente agradável).

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017