sábado, 30 de setembro de 2017

AMADEU FERREIRA

Na década de 80, quando estudante na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ouvi falar de um estudante da noite, consideravelmente mais velho que eu, que era muito bom aluno e facultava cópias dos seus apontamentos manuscritos na secção de folhas da Associação Académica.

Estudei Direito Penal por essas cópias, mas não o conheci pessoalmente. Os apontamentos eram excelentes, desde a respectiva clareza até à legibilidade da caligrafia.

Outros colegas gravavam as aulas, desgravavam-nas e davam-lhe o texto em bruto, que ele depois organizava, daí resultando um texto por ele manuscrito com mais de meio milhar de páginas, que ele entregava na Associação Académica, onde eram fotocopiadas para toda a gente. Centenas de alunos estudaram por essa sebenta.

Naquela sebenta manuscrita o seu nome não aparece; apenas surge o nome do regente (Dr. Rui Pereira, mais tarde Ministro da Administração Interna).

Foi o melhor aluno do seu curso (1985-1990), apresentou no concurso para assistente estagiário um estudo sobre o homicídio privilegiado (1990) e, em 1995, discutiu a dissertação de mestrado intitulada "Valores Mobiliários Escriturais - um novo modo de representação e circulação de direitos". Entretanto, tinha começado a trabalhar na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).

Em pouco tempo passou de assistente de Direito Penal a regente de Direito dos Valores Mobiliários e foi admitido à preparação da dissertação de doutoramento, que porém suspendeu devido à nomeação para o Conselho Directivo da CMVM.




Natural de Sendim, a partir dos finais dos anos noventa dedicou-se também intensamente à defesa e promoção da língua e cultura mirandesas.

Publicou em mirandês, em seu nome e de vários pseudónimos, os mais diversos géneros literários (romance, conto, teatro, poesia) e traduções.

Traduziu para mirandês, entre outros, dois livros de Astérix, "Os Quatro Evangelhos - Ls Quatro Eibangeillos", e, sob o pseudónimo de Fracisco Niebro, "Os Lusíadas - Ls Lusíadas" e a "Mensagem - Mensaige"de Fernando Pessoa.

Foi Presidente da Associaçon de Lhéngua i Cultura Mirandesa e da Academia de Letras de Trás-os-Montes.

Morreu em 2015, com 64 anos. Quatro dias depois da morte foram lançados a sua biografia, "O Fio das Lembranças", de Teresa Martins Marques, e o seu mais recente livro, "Belheç - Velhice", sob o pseudónimo Fracisco Niebro.



Ao ler a sua biografia, descobri que frequentou o seminário entre 1961 e 1972 (de onde foi expulso), participou enquanto militar no 25 de Abril e no 25 de Novembro, e foi fundador e deputado da UDP (tendo feito uma única intervenção no Parlamento, na reunião plenária de 14 de Julho de 1982).

Para terminar, um excerto do livro "Belheç - Velhice", em edição bilingue:

"Há um tempo para nascer e um tempo para morrer.
A alma não pode voar para o céu. Se assim fosse, como podiam nascer coisas novas? Essa é a ressurreição das almas: são vidas novas. São bichinhos, ervinhas e tudo o que vive.
É por isso que fazem mal em sepultar as pessoas no cemitério: deviam enterrá-las pelos campos para ajudar as almas a nascer. Assim, Deus, seja lá ele quem for, tem muito mais trabalho."

" Hai un tiempo para nacer i un tiempo para un se morrer.
L'alma nun puode bolar pa l cielo. Senó, cumo podien nacer cousas nuobas? Essa ye la rucerreiçon de las almas: son bidas nuobas. Son bichicos, arbicas i todo l que bibe.
Ye por esso que fázen mui mal an anterrar las pessonas ne l semitério: habien de las anterrar pul campo para ajudar las almas a nacer. Assi, Dius, seia quien fur, ten muito mais trabalho."

domingo, 17 de setembro de 2017

EPC


Foi um dos intelectuais que marcaram a minha formação.

"Conheci-o" como cronista em O Jornal, como um dos três membros do conselho editorial e colaborador do Jornal de Letras, Artes e Ideias, como crítico de cinema e colaborador no EXPRESSO, como ensaísta (A Noite do Mundo, O Cálculo das Sombras), como escritor do diário Tudo o que não escrevi, como cronista diário no jornal Público com O Fio do Horizonte.

Fez no dia 25 de agosto dez anos que morreu Eduardo Prado Coelho.


                                                    1944 - 2007


Transcrevo o final do primeiro volume do diário Tudo o que não escrevi:


Paris - 28.2.92

(...) Tantas vezes vimos no cinema que até se tornou banal: alguém escorrega para o abismo, em baixo o vale rochoso, o desfiladeiro, o lago das piranhas, o poço eriçado de cobras, a caixa negra do ascensor, e a mão sobrevivente pede a derradeira ajuda. Mais difícil é vivê-lo. Já o meu pai estava doente, definitivamente doente, e conversávamos um dia junto à janela do escritório. Em frente, Monsanto, o jardim da Companhia das Águas, relva, arvoredo. E o meu pai disse: "Venho muitas vezes olhar aquela árvore. Ela dá-me um sentimento de paz." Essa árvore, serena, frondosa, esplêndida, exuberante, passou a ser a morte do meu pai - a sua face diurna. Porque houve outra voltada para o abismo, a mais terrível. O meu pai perguntava por que razão não o levavam a Londres, a mão pedindo que o salvassem. Fui obrigado a dizer-lhe, em nome do médico, que não valia a pena. Mas como é que uma coisa não vale a pena se há uma árvore em frente a rebentar de pássaros verdes? A mão ficou abandonada sobre o lençol, o olhar distraiu-se. Ao regressar a casa, conduzia numa espécie de levitação, guiado apenas pela luz das lágrimas. Nesses tempos, ele lia as Confissões de Santo Agostinho, e as palavras começavam-lhe a ficar inclinadas, trôpegas, desobedientes. Não tenho medo da minha morte, entendes?, mas da morte da árvore, um dia.

                                      "Open then, mine eyes, your double sluice, 
                                      And practise so your noblest use;
                                      For others too can see, or sleep,
                                      But only human eyes can weep.
                                      (...)
                                      Thus let your streams o'erflow your springs,
                                      Till eyes and tears be the same things:
                                      And each the others's difference bears:
                                      This weeping eyes, those seeing tears"

                                                                           ANDREW MARVELL


Paris - 29.2.92

Afinal Miguel Strogoff não era, nunca tinha sido cego. Um fenómeno puramente humano, ao mesmo tempo psíquico e físico, tinha neutralizado a acção da lâmina incandescente que o executor de Feofar havia feito passar diante dos seus olhos.
Lembram-se de que, no momento do suplício, Marfa Strogoff estava lá, estendendo as mãos em direcção ao seu filho. Miguel Strogoff olhava-a como um filho pode olhar a sua mãe, quando é pela última vez. Explodindo em vagas do seu coração para os olhos, as lágrimas, que o seu orgulho tentava em vão reter, acumulavam-se sob as pálpebras, e, volatizando-se na córnea, tinham-lhe salvo a vista. A camada de vapor formada pelas suas lágrimas, interpondo-se entre o sabre ardente e as pupilas, bastara para aniquilar a acção do calor.