sexta-feira, 28 de maio de 2010

A MORTE DE IVAN ILITCH

«XI

Assim se passaram outras duas semanas. Nessas semanas deu-se um acontecimento desejado por Ivan Ilitch e pela sua mulher: Petrichev fez o pedido formal de casamento. Aconteceu à tarde. No dia seguinte Praskóvia Fiódorovna entrou no quarto do marido pensando em como informá-lo do pedido de Fiódor Petróvitch, mas nessa mesma noite deu-se uma mudança para pior no estado de Ivan Ilitch. Praskóvia Fiódorovna encontrou-o naquele mesmo sofá, mas numa posição diferente. Estava deitado de costas, gemia e olhava fixamente à sua frente.
Ela começou a falar dos medicamentos, mas ele olhou-a de tal modo que ela não acabou de dizer aquilo que tinha começado: tal era a raiva contra ela que se exprimia naquele olhar.
- Por amor de Deus, deixa-me morrer em paz - disse ele.
Ela quis sair, mas nesse instante a filha entrou e aproximou-se para dar os bons-dias. Ele olhou a filha do mesmo modo que olhara a mulher e à pergunta dela sobre a sua saúde disse-lhe secamente que em breve os deixaria a todos livres. Ambas se calaram, ficaram sentadas uns momentos e depois saíram.
- Que culpa temos nós? - disse Liza à mãe. - Até parece que fomos nós que fizemos aquilo! Tenho pena do papá, mas para quê atormentar-nos?
O médico chegou à hora habitual. Ivan Ilitch respondia-lhe: «sim, não», sem desviar dele o olhar furioso, e no fim disse:
- O senhor sabe que não me pode ajudar, por isso deixe-me em paz.
- Podemos aliviar o sofrimento - disse o médico.
- Nem isso pode fazer; deixe-me.
O médico saiu para a sala de estar e informou Praskóvia Fiódorovna de que a situação era muito grave e que o único meio para aliviar os sofrimentos, que deviam ser horríveis, era o ópio.
O médico disse que os sofrimentos físicos dele eram horríveis, e isso era verdade; mas mais horríveis que os sofrimentos físicos eram os sofrimentos morais, que eram o seu principal tormento.
Os seus sofrimentos morais consistiam em que naquela noite, ao olhar o rosto ensonado, bondoso e de maçãs salientes de Guerássim, lhe ocorreu de súbito: e se toda a minha vida estivesse errada?
Ocorreu-lhe que aquilo que antes lhe parecia completamente impossível, que não tivesse vivido a sua vida como devia ser, que isso pudesse ser verdade. Ocorreu-lhe que aquelas suas quase imperceptíveis veleidades de luta contra aquilo que as pessoas altamente colocadas consideravam bom, essas quase imperceptíveis veleidades que ele prontamente rejeitava - que elas pudessem ser verdadeiras e tudo o resto falso. E as suas funções oficiais, e o seu regime de vida, e aqueles interesses sociais e oficiais - tudo isso pudesse estar errado. E de repente sentiu toda a fraqueza daquilo que defendia. E não havia nada que defender.
«Mas se é assim», disse para si mesmo, «e eu estou a deixar a vida com a consciência de ter perdido tudo aquilo que me foi dado e que é impossível corrigir, como será?» Deitou-se de costas e pôs-se a rememorar toda a sua vida de modo inteiramente novo. Quando de manhã viu o criado e depois a mulher, depois a filha, depois o médico - cada um dos movimentos deles, cada palavra, confirmava para ele a horrível verdade que se lhe revelara durante a noite. Neles via-se a si próprio, tudo aquilo para que tinha vivido e via claramente que tudo aquilo estava mal, tudo aquilo era um horrível e enorme engano que ocultava a vida e a morte. Essa consciência aumentou, decuplicou os seus sofrimentos físicos. Gemia e agitava-se e puxava a roupa. Parecia-lhe que esta o apertava e o asfixiava. E odiava-os por causa disso.
Deram-lhe uma grande dose de ópio e ele ficou inconsciente; mas à hora do almoço tudo começou de novo. Mandava toda a gente embora e agitava-se de um lado para o outro.
A mulher aproximou-se e disse:
- Jean, meu querido, faz isto por mim (por mim?). Mal não pode fazer, e muitas vezes ajuda. Ora, isto não é nada. Até as pessoas com saúde muitas vezes...
Ele abriu muito os olhos.
- O quê? Comungar? Para quê? Não é preciso. E daí...
Ela começou a chorar.
- Sim, meu amigo? Eu chamo o nosso padre, ele é tão amável...
- Óptimo, muito bem - disse ele.
Quando o sacerdote chegou e o ouviu em confissão, ele acalmou-se, sentiu como que um alívio das suas dúvidas e em consequência disso dos sofrimentos, e teve um momento de esperança. De novo começou a pensar no apêndice e na possibilidade de cura.Comungou com lágrimas nos olhos.
Quando depois da comunhão o deitaram, sentiu-se aliviado por momentos e de novo surgiu uma esperança de vida. Começou a pensar na operação que lhe tinha sido sugerida. «Viver, quero viver», disse para si mesmo. A mulher veio felicitá-lo; disse-lhe as palavras habituais e acrescentou:
- Sentes-te melhor, não é verdade?
Sem olhar para ela, ele disse: sim.
As roupas dela, a compleição dela, a expressão do rosto, o som da voz - tudo lhe dizia a ele a mesma coisa: «Não é o que devia ser. Tudo aquilo por que tu viveste e vives, é tudo mentira, engano, que esconde de ti a vida e a morte.»E assim que pensou isto o seu ódio cresceu, e juntamente com o ódio os cruéis sofrimentos físicos e com os sofrimentos a consciência do fim inevitável e próximo. Havia qualquer coisa nova: uma sensação de aperto, pontadas de sufocação.
A expressão do seu rosto quando disse «sim» era horrível. Depois de proferir esse «sim», olhando-a a direito no rosto, voltou-se de bruços com uma rapidez invulgar para o seu estado de fraqueza, e gritou:
- Vão-se embora, vão-se, deixem-me em paz!»

Lev Tolstoi, A Morte de Ivan Iltich, Leya (BIS), 2008

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O MUNDO MUDOU

Hoje, de acordo com o prometido, publicaria o penúltimo capítulo de "A Morte de Ivan Ilitch".

Porém, o mundo mudou nos últimos 15 dias.