sábado, 31 de março de 2012

INCIPITS

Um desafio: três (ou quatro) incipits que tenham vindo à tona da memória.
__________________________________________________________
«11 de Dezembro
Olho para o papel branco (afinal um tudo-nada pardacento) sem a angústia de falava Gauguin (ou era Von Gogh?) ao ver-se em frente da tela, mas com apreensão, apesar de tudo. Que vou eu escrever - eu, a quem nada neste mundo obriga a escrever? Eu, antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas que neste momento ainda não redigi, dentro de alguns minutos (de alguns anos) finalmente redigidas?
Não sei: folheio ao acaso a página cento e quinze do meu caderno, ainda branca, ainda parda, e pergunto-me: daqui a dois, a três, a quatro meses, quando a alcançar - se a alcançar -, terei escrito uns milhares de palavras. Que palavras?
E fico perturbado, muito mais perturbado por essa página do que por esta, já em parte azulada e vazia de surpresas. Como saber se nela, hoje e durante um ou dois meses ainda branca, branca e situada no futuro, embora um futuro espacial, eu não contarei (não terei contado) coisas de cortar o coração? Sobre mim. Ou sobre o mundo, uma guerra, a vitória completa do fascismo, por exemplo.»
BOLOR, Augusto Abelaira, 1968
__________________________________________________________
«Teve uma infância estranha», disse Austin. «Em última análise, todas as infâncias o são», disse Mister DeLuxe. «Molero diz», disse Austin, «que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo à chuva.»
O QUE DIZ MOLERO, Dinis Machado, 1977
_________________________________________________________
«D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fose, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-se ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais. Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimeno fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de D. Maria Ana. Mas Deus é grande.»
MEMORIAL DO CONVENTO, José Saramago, 1982
_________________________________________________________
«Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta mediocridade dourada, pese o convite e o consolo do poeta que a acolheu. Também a mim, como ao Orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. Os dias arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cómodo impera, passei o que passei, peno longe, como ser feliz?»
UM DEUS PASSEANDO PELA BRISA DA TARDE, Mário de Carvalho, 1994

sexta-feira, 23 de março de 2012

CRÉDULOS E INCRÉDULOS

Uma visão lúcida, na crónica de Rui Tavares, no PÚBLICO do passado dia 8 de Fevereiro. Só a educação e a cultura nos podem salvar.
«A linguagem vazia dos governantes (...) acabou criando uma sociedade dividida entre crédulos de um lado e incrédulos do outro.
Nessa sociedade as reações são sempre as mesmas independentemente dos factos. Seja como for, o crédulo acredita em tudo o que lhe dizem, o incrédulo não acredita em nada. (...) Ambos podem ser, portanto, perigosos à sua maneira.
O crédulo acha sempre que os governantes são, por definição, pessoas responsáveis. A cada "cimeira histórica para salvar o euro" não consegue conceber que os governantes tenham sido ultrapassados pelos acontecimentos ou limitados pelos seus preconceitos, e inventa desculpas para se ter falhado o alvo (...).
O incrédulo acredita que os governantes não passam de meros fantoches do "sistema". Há versões anti-capitalistas, mas também pro-capitalistas, destes incrédulos: para uns o mercado tem todo o poder, para os outros o mercado tem toda a razão.
Tal como o crédulo encontra desculpas para a sua passividade porque pensa que os responsáveis vão acabar por fazer aquilo que é certo, o incrédulo não toma responsabilidade por absolutamente nada do que se possa fazer: ele viu tudo, ele já sabia que nada era para levar a sério, ele não deseja envolver-se em nada.
Como parece evidente, tanto o crédulo como o incrédulo se enganam a si mesmos, e aos outros: um finge acreditar para não ter de agir, outro finge não acreditar para não ter de agir.
Uma sociedade perfeitamente dividida entre crédulos e incrédulos é uma sociedade perigosa. Nela, os políticos sem escrúpulos entendem que podem dizer tudo o que quiserem, porque os crédulos são crédulos e acreditam em tudo o que se lhes diga e os incrédulos são incrédulos e de qualquer forma nunca acreditam em nada. Passa então a ser possível, para um político sem escrúpulos, dizer que quer a paz mas procurar a guerra - foi o que sucedeu na Europa dos anos 30.
Só uma sociedade inteira, com uma cultura cívica, pode ser antídoto para os políticos sem escrúpulos; não são os políticos com escrúpulos que conseguem vencer os políticos sem escrúpulos. Um escrupuloso tem sempre menos armas no arsenal do que um inescrepuloso; encontra-se limitado pelos seus escrúpulos e, se decidisse deixá-los de lado, passaria a ser igual ao outro - que assim ganharia duas vezes.
Uma sociedade dividida entre crédulos de um lado e incrédulos do outro não pode salvar-se. Essa seria uma sociedade em que uns achariam que não é preciso fazer nada e outros achariam que não há nada que se possa fazer.
Para nos salvarmos, temos de ser crédulos e incrédulos ao mesmo tempo.»

quinta-feira, 1 de março de 2012

LIVRARIA PORTUGAL

Nas mensagens de 29 de Outubro de 2009 e 31 de Março de 2011 falei na Livraria Portugal.
Volto a falar, infelizmente: fechou hoje.