quarta-feira, 29 de junho de 2011

VICTOR CUNHA REGO (1933-2000)


















Victor Cunha Rego (VCR) foi jornalista, exilado político (no Brasil, Argélia, Jugoslávia e Itália), político (fundador do Partido Socialista, chefe de gabinete de Mário Soares, secretário de Estado, apoiante da Aliança Democrática), director do Diário de Notícias, criou a editora Perspectivas & Realidades, foi embaixador em Espanha, presidente da RTP, primeiro director do Semanário.


No período final da vida, foi cronista diário na última página do Diário de Notícias, entre 1992 e 1999.


Não conheci ninguém que no jornalismo que conseguisse dizer tanto, e tão bem, em tão pouco espaço.


A clareza, a concisão, a estrutura textual, a riqueza de conteúdo, o brilhantismo da linguagem e a lucidez fascinavam-me diariamente.


A sensação, quando se lia, era a de que (tal como nas notas de Mozart) não havia palavras a mais nem a menos.


Não foi o primeiro nem o último a arriscar a crónica diária: já referi, na mensagem de 21 de Janeiro de 2010, Augusto Abelaira, no Século; depois de VCR, Eduardo Prado Coelho também aceitou esse desafio, no Público, com a crónica O Fio do Horizonte.


Nesta mensagem e na próxima reproduzirei, a título ilustrativo, algumas passagens das referidas crónicas que, hoje, doze, catorze, dezanove anos depois, acrescentam, às qualidades já referidas, mais duas que VCR possuía: a clarividência de ver (e analisar e expor) o que fica depois de tudo o que passa e a capacidade de previsão própria de quem tem aquela lucidez.


Era um homem que (referiu-o numa entrevista) gostava de visitar cemitérios.


*

«Global, hoje, é a mentira da venda de uma «sociedade de emprego», que já não existe mas que ainda nos avalia e nos faz andar a toque de caixa. Global é a mentira de uma «economia de mercado» que também já acabou e deu lugar a uma economia virtual e especulativa. Global é a chantagem do discurso «antipessimista», ele, sim, calculadamente pessimista porque aprisiona as pessoas às suas cabalas.
(...) começa a haver razões para crer que os actuais líderes políticos europeus, cujo pensamento se desconhece, ao contrário do que sempre sucedera na Europa, saibam dos crimes que a actual mentira global comporta.

Tornam-se, assim, cúmplices dos que dirigem o casino.

(...) o culto da rentabilidade - e é nesse sentido que tantos também querem mais educação - no lugar do culto da dignidade pessoal e do Estado acabará por impor a sua mentira global.

A Europa não está condenada por ser velha. Está muito fraca porque a sua economia é já virtual.

(...)»

*

«É curioso serem alguns filósofos norte-americanos - e nada comunistas - a tentarem recuperar para o Manifesto Comunista os méritos que lhe pertencem e que a esquerda internacional tem espezinhado com o mesmo oportunismo com que os endeusou.

De facto, mais importante do que o Manifesto só o Novo Testamento. Ambos falharam, até agora, nas profecias da redenção, mas sem eles o mundo seria ainda muito pior.

Foram os Evangelhos e a fraternidade, simultaneamente divina e humana, de Cristo que mais cedo puseram em guarda as almas contra o poder do dinheiro e a submissão ao mercado - que de forma reguladora necessária passou a substância dominadora hegemónica. Foi o Manifesto que impulsionou os sindicatos modernos e levou os trabalhadores a exigirem uma parcela do poder político. Se, como escreve Richard Rorty, substituirmos «burguesia» pelos vinte por cento que controlam a imensa riqueza entretanto gerada e o «proletariado» pelos outros oitenta por cento, muito do que ficou escrito no Manifesto mantém a sua lógica e veracidade.

Falou-se apressadamente no fim da História. Agora a moda é declarar a economia dos ricos - com a norte-americana à frente - para além da História. Como se ela não continuasse a basear-se no princípio mais velho de todos: o de que as pessoas que se apoderam do dinheiro e do poder farão tudo para que os descendentes os monopolizem para sempre. História é a luta entre esses monopolistas e a ética da humanidade.

O além da História? Vamos servir de chocas nessa cernelha?»


*

«Tudo serve para lavar capitais: os bilhetes premiados das lotarias, os grandes «concertos» multitudinários, as universidades espaventosas, os casinos, os grandes acontecimentos desportivos, o negócio dos grandes empórios de roupas ou carros são alguns dos domínios - «artesanal» ao «industrial» - em que se transformaram as modestas lavandarias de Chicago dos anos 20.

E, é claro, o dinheiro que já foi possível depositar nos bancos ou investir no mercado de capitais constitui a «melhor» lavagem.

O grosso é da droga. Mas há outras fontes de receita como as clássicas armas, a velha prostituição ou a nova pedofilia.

Pelas informações que nos chegam, no Sul do Senegal - a zona onde a Guiné meteu o dedo - planta-se droga para comprar armas a fim de alcançar o poder e receber o dinheiro do... petróleo. Quadro mais clássico não se arranjaria.

Com a Internet, a lavagem é rapidíssima. Disse-o, pela primeira vez, o FBI.

Com o euro - ou no decurso da passagem para o euro -, a lavagem poderá ser enorme.

Já se sabia, mas nunca é de mais recordar.

E, assim, cada vez mais, todos nós, sem excepção, nos tornamos cúmplices passivos do crime organizado.

Não podemos, muitos de nós, ser acusados de tirar proventos desse facto ou, sequer, de favorecê-lo.

Mas ao não nos rebelarmos contra um sistema - o nosso - que gira dessa forma, somos o que somos.

Hipócritas e oportunistas? Mais, mais.

A desculpa é a de nem darmos por isso.»


*


«Ainda ninguém, entre os políticos, nos disse a verdade (...). Ninguém nos disse que o emprego deixou de ser um direito garantido e o crescimento deixou de ter taxas asseguradas. Tudo depende agora das empresas e das suas relações competitivas. Vivemos uma revolução, mas, como o sistema de direitos europeus ainda não desabou, pensamos estar a viver uma evolução.

Os governos calam-se, porque só pensam em vencer eleições e perpetuarem-se. As oposições calam-se, porque têm sido coniventes na decadência.

Governos e oposições sabem ser impossível manter o modelo social europeu a partir do disparo da globalização. Mas ninguém fala. Guardam, como as mafias, a lei do silêncio e vêem em cada ano que passa sem desmoronamentos uma prova da sua argúcia.

Não é possível prever quem vencerá quando houver resistência dura às mudanças. Os velhos, só por eles, não conseguirão transformar-se em guerreiros. Mas se os outros descobrirem que um dia, fatalmente, serão velhos - uma descoberta mais difícil do que parece - a resistência pode ser grande.
E tão irracional quanto o que se omite é despudorado.»


*



«O primeiro dia de um ano - o de amanhã - é o envolvimento contraditório do antes pelo depois. Ainda somos o que vamos deixar de ser e já somos o que seremos - dizia Paul-Eugéne Charbonneau nos tempos em que valia a pena falar assim.

Valia a pena falar, e escrever, assim porque as pessoas pensavam e, pensando, davam-se conta da quarta dimensão que lhes é exclusiva: fora da consciência o tempo apenas é suportado.

É a consciência dramática do tempo vivido pelo homem que explica como esse tempo - irregular, desigual, acidentado, repleto de rupturas - não consegue esconder a caminhada para o infinito. Todas as especulações filosóficas não mudam o facto de sermos viajantes e de a nossa viagem ser irreversível.

Acontece que para muitos se o passado não foi belo - e às vezes terá sido -, o futuro não terá melhor aspecto - embora possa vir a tê-lo.

Ora no pressentimento de tempos difíceis não há alegrias que sobrevivam.

Com os hábitos que as «audiências» (o barulho) nos impuseram não chegamos, sequer, a pensar no que nos rouba tanto a alegria quanto a dor e nos entrega à barbaridade do soporífero, da repulsa da entrega e da incapacidade da razão.

Em qualquer caso não fará mal fazer de conta que este primeiro dia de Janeiro é uma promessa da qual os corações necessitam para sobreviver. E compreender a euforia que ainda se apodera de alguns esperançados em que os novos horizontes sejam radiosos.

Mas será conveniente não esquecer que não é o tempo que passa, nós é que passamos.

Porque, fazendo assim, pensamos.»

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