quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

FLORBELA


Em 1981 foi publicada a primeira edição do "Diário do último ano", de Florbela Espanca.

Foi escrito entre 11 de janeiro e 2 de dezembro de 1930, último ano de vida de Florbela, que se suicidou em 8 de dezembro.

Tratou-se de uma edição fac-similada, com prefácio de Natália Correia.




Transcrevo algumas passagens, por certo (parcialmente) diferentes das que teria escolhido quando, há 36 anos, o li pela primeira vez:    


JANEIRO 1930
11 - Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir - todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.
Foram-se, há muito, os vinte anos, a época das análises, das complicadas dissecações interiores. Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros...talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto.
Nas horas que se desagregam, que desfio entre os meus dedos parados, sou a que sabe sempre que horas são, que dia é, o que faz hoje, amanhã, depois. Não sinto deslizar o tempo através de mim, sou eu que deslizo através dele e sinto-me passar com a consciência nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir. Como compreender a amargura desta amargura? (...) «Attendre sans espérer» poderia ser a minha divisa, a divisa do meu tédio que ainda se dá ao prazer de fazer frases. 
(...)
21 - (...) Eu que tenho esgotado todas as sensações artísticas, sentimentais, intelectuais, todas as emoções que a minha poderosa imaginação de criaturinha fantástica e estranha tem sabido bordar no tecido incolor da minha vida medíocre, não esgotei ainda, graças aos deuses, o arrepio de prazer, o estremecimento de entusiasmo, este «élan» quase divino, para tudo o que é belo, grande e puro: flor a abrir ou tinta de crepúsculo, raminho de árvore, ou gota de chuva, cores, linhas, perfumes, asas, todas as belas coisas que me consolam do resto. (...)
(...)
23 - Endiabrada Bela! Estranha abelha que dos mais doces cálices só sabe extrair fel! «Para que quer esta criatura a inteligência, se não há meio de ser feliz?», dizia, dantes, meu pai, indignado. Ó ingénuo pai de 60 anos, quando é que tu viste servir a inteligência para tornar feliz alguém? Quando, ó ingénuo pai de 60 anos?... Só se pode ser feliz simplificando, simplificando sempre, arrancando, diminuindo, esmagando, reduzindo; e a inteligência cria em volta de nós um mar imenso de ondas, de espumas, de destroços no meio do qual somos depois o náufrago que se revolta, que se debate em vão, que não quer desaparecer sem estreitar de encontro ao peito qualquer coisa que anda longe: raio de sol ou reflexo de estrelas. E todos os astros moram lá no alto, ó ingénuo pai de 60 anos!
(...)
FEVEREIRO
(...)
23 - A vida tem a incoerência de um sonho. E quem sabe se realmente estaremos a dormir e a sonhar e acabaremos por despertar um dia? Será a esse despertar que os católicos chamam Deus?
(...)
ABRIL
20 - (…) Afinal, para que pensar? Viver é não saber que se vive. Procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurasténicos. Só uma visão de conjunto pode aproximar-se da verdade. Examinar em detalhe é criar novos detalhes. Por debaixo da cor está o desenho firme, e só se encontra o que se não procura. Porque me não esqueço eu de viver... para viver?
(...)
JULHO
16 - Até hoje, todas as minhas cartas de amor não são mais que a realização da minha necessidade de fazer frases. Se o «Prince Charmant» vier, que lhe direi eu de novo, de sincero, de verdadeiramente sentido? Tão pobres somos que as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verdade!
(…)
DEZEMBRO
2 - E não haver gestos novos nem palavras novas!


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