domingo, 17 de setembro de 2017

EPC


Foi um dos intelectuais que marcaram a minha formação.

"Conheci-o" como cronista em O Jornal, como um dos três membros do conselho editorial e colaborador do Jornal de Letras, Artes e Ideias, como crítico de cinema e colaborador no EXPRESSO, como ensaísta (A Noite do Mundo, O Cálculo das Sombras), como escritor do diário Tudo o que não escrevi, como cronista diário no jornal Público com O Fio do Horizonte.

Fez no dia 25 de agosto dez anos que morreu Eduardo Prado Coelho.


                                                    1944 - 2007


Transcrevo o final do primeiro volume do diário Tudo o que não escrevi:


Paris - 28.2.92

(...) Tantas vezes vimos no cinema que até se tornou banal: alguém escorrega para o abismo, em baixo o vale rochoso, o desfiladeiro, o lago das piranhas, o poço eriçado de cobras, a caixa negra do ascensor, e a mão sobrevivente pede a derradeira ajuda. Mais difícil é vivê-lo. Já o meu pai estava doente, definitivamente doente, e conversávamos um dia junto à janela do escritório. Em frente, Monsanto, o jardim da Companhia das Águas, relva, arvoredo. E o meu pai disse: "Venho muitas vezes olhar aquela árvore. Ela dá-me um sentimento de paz." Essa árvore, serena, frondosa, esplêndida, exuberante, passou a ser a morte do meu pai - a sua face diurna. Porque houve outra voltada para o abismo, a mais terrível. O meu pai perguntava por que razão não o levavam a Londres, a mão pedindo que o salvassem. Fui obrigado a dizer-lhe, em nome do médico, que não valia a pena. Mas como é que uma coisa não vale a pena se há uma árvore em frente a rebentar de pássaros verdes? A mão ficou abandonada sobre o lençol, o olhar distraiu-se. Ao regressar a casa, conduzia numa espécie de levitação, guiado apenas pela luz das lágrimas. Nesses tempos, ele lia as Confissões de Santo Agostinho, e as palavras começavam-lhe a ficar inclinadas, trôpegas, desobedientes. Não tenho medo da minha morte, entendes?, mas da morte da árvore, um dia.

                                      "Open then, mine eyes, your double sluice, 
                                      And practise so your noblest use;
                                      For others too can see, or sleep,
                                      But only human eyes can weep.
                                      (...)
                                      Thus let your streams o'erflow your springs,
                                      Till eyes and tears be the same things:
                                      And each the others's difference bears:
                                      This weeping eyes, those seeing tears"

                                                                           ANDREW MARVELL


Paris - 29.2.92

Afinal Miguel Strogoff não era, nunca tinha sido cego. Um fenómeno puramente humano, ao mesmo tempo psíquico e físico, tinha neutralizado a acção da lâmina incandescente que o executor de Feofar havia feito passar diante dos seus olhos.
Lembram-se de que, no momento do suplício, Marfa Strogoff estava lá, estendendo as mãos em direcção ao seu filho. Miguel Strogoff olhava-a como um filho pode olhar a sua mãe, quando é pela última vez. Explodindo em vagas do seu coração para os olhos, as lágrimas, que o seu orgulho tentava em vão reter, acumulavam-se sob as pálpebras, e, volatizando-se na córnea, tinham-lhe salvo a vista. A camada de vapor formada pelas suas lágrimas, interpondo-se entre o sabre ardente e as pupilas, bastara para aniquilar a acção do calor.

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