domingo, 11 de julho de 2010

MÁRIO DE CARVALHO






















No dia 26 de Abril foi apresentado, na Livraria Barata, com a presença do escritor, o novo livro de Mário de Carvalho, "A Arte de Morrer Longe".
Na sessão de apresentação o actor Diogo Dória leu excertos da obra: a escrita de Mário de Carvalho ganhou uma dimensão para mim desconhecida e insuspeitada.
O meu contacto com a obra de Mário de Carvalho começou a partir da leitura, no primeiro semestre de 2004, de "Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina"(2003), a que se seguiram as leituras dos livros "Contos Vagabundos" (2000), "A Sala Magenta" (2008), "A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho" (1983) e "A Arte de Morrer Longe" (2010).
Era Augusto Abelaira quem dizia que há dois tipos de escritores: os que escrevem livros diferentes uns dos outros e os que, publicando vários livros, escrevem sempre o mesmo livro.
Abelaira considerava-se pertencente ao segundo grupo.
Mário de Cravalho integra claramente o primeiro.
Na capa de "A Arte de Morre Longe" consta que se trata de um "cronovelema", género que, segundo o próprio autor, junta crónica (não só a jornalística mas também a antiga, à Fernão Lopes), novela, cinema e poema.
Aliás, a primeira referência a este "género" aparece na página 34 de "Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina".
"A Arte de Morrer Longe" é um livro sobre um casal jovem - Arnaldo e Bárbara - em processo de divórcio e partilha (de uma tartaruga), sobre o mundo contemporâneo, sobre Lisboa (com a já famosa ode à Avenida de Roma), sobre a escrita, sobre a famosa Lagoa Moura (e Grodemil), sobre a condição humana.
Tudo, aliado a uma escrita imediatamente reconhecível e que justificou que Ricardo Araújo Pereira dissesse que gostaria de escrever, um dia, assim.
Pequena curiosidade: quando lia "A Arte de Morrer Longe", lia, também, algumas partes de "Os Lusíadas".
Eis quando, depois de encontrar Coriolano e Cintialina, amantes potenciais mas nunca concretizados de Bárbara e Arnaldo, respectivamente, me deparo (na estância 33 do canto IV)com Coriolano e Catilina (a par de Sertório), romanos traidores que lutaram contra a sua pátria:

«Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes.»

Transcrevo um excerto de "A Arte de Morrer Longe" (págs. 88-91) que me tocou particularmente, com uma extraordinária alegoria da condição humana:

«Pobre tartaruga sem nome, fitando em frente, no seu aquário de acrílico embaciado, conformada por lhe terem propiciado ar respirável, um espaço para movimento, uma água limosa, uma comida lançada suficientemente do alto. Se eu estou bem informado sobre a visão dos quelónios, mais apetrechada para ver ao longe que ao perto, ela distinguiria, à transparência, umas sombras acinzentadas e uns movimentos de claro-escuro, a perpassar. Das vozes e remoques sardónicos em volta aperceberia tão-somente as vibrações negativas. Nada mais lhe chegaria. Haveria apenas, em qualquer lado, causando desconforto, um apelo obscuro e aprazível de vastidões pantanosas, rumorejo de insectos, golpes de sol, entre névoas, sobre confortáveis águas pardas, macias, espessas e sem cloro.
E aí está como as circunstâncias da tartaruga reclusa, no seu exíguo compartimento, desimpedida de movimentar os membros, a cabeça, e de embater contra as paredes do aquário, evocam a condição humana, livre de esbracejar dentro dos seus limites, mas apenas pressentindo, sem os compreender, e sem atingir as suas verdadeiras naturezas, as vozes, os rumores e os relampejos que há em volta.
Afastem-se da terra cinquenta quilómetros, passem a estratosfera, abandonem a gravidade, o que está em cima será igual ao que está em baixo, dando cumprimento à célebre máxima do Hermes Trimegistos, cuja comprovação exige, no entanto, o concurso de poderosíssimos motores. Recuem até à explosão primordial e o vocábulo «antes» deixará de fazer sentido, porque supõe a própria existência do tempo que só então («só então»?) foi criado e atentem na insuficiência da prosa para atingir estas complexas realidades, plantadas no âmago do inefável.
Ora acontece que a origem da quezília entre Arnaldo e Bárbara é tão misteriosa e inalcançável pelos sentidos como o Big Bang ou as fórmulas do esoterismo helenístico. O que existiu para além do começo? Ninguém sabe. A terra está por cima ou por baixo do sol? É indiferente. Tanto Arnaldo como Bárbara passavam boa parte dos seus momentos mais íntimos a tentar reconstituir a forma como tudo tinha começado: a palavra mais áspera, o gesto de brusquidão, o sarcasmo, a desatenção, a indiferença, em suma, o atentado mais primeiro, a causa movens daquela espiral que já ia quase a romper-se. Mas não conseguiam: o que lhes ocorria eram sempre causas segundas, circunstâncias agravantes, remoques e atitudes que vinham acumular-se e crescendo, como pedras que se vão atirando para um poço e que, com a continuação, já fazem diferença e transvazam.
E se cada um deles era bem capaz de elaborar uma completa lista das culpas do outro, nenhum podia, em boa consciência, garantir que elas não eram a resposta a uma provocação que as antecedia, que por sua vez se justificava com uma palavra mal colocada, que, por seu lado... O mais que conseguiam aquelas almas, que até não eram mal formadas, era uma espécie de cegarrega, como a da formiga que tem o pé preso na neve e pede ao Sol que derreta a neve, etc.
A cada dia que passava, as coisas tendiam a agravar-se e o próprio esforço de memória, revolvendo e trazendo ao de cima escórias e impurezas, algumas há muito soterradas e, até, anteriores ao casamento, era um factor de desconforto e afastamento. Como em tudo na vida, a recordação dos bons momentos era abafada pela dos maus, porque o escuro é mais forte que a claridade, e a treva é o estado natural de repouso que não exige nem esforço nem energia.
Sobretudo, naquele casal não existia maturidade que permitisse um exercício recíproco de apaziguamento. Sobrelevavam, por um lado, as exigências de um amor-próprio que não encontrava melhor nem mais fácil aplicação; por outro, o próprio receio do fracasso, não fosse o esforço de conciliação um passo mal dado, a causar mal-entendidos e mais consequências enviesadas.»

No último trimestre de 2004, frequentei "oficinas de escrita narrativa" com Mário de Carvalho, organizadas pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e pela revista Ficções, que decorreram na livraria Ler Devagar (então no Bairro Alto, por trás do Pavilhão Chinês).
Publicarei de seguida o fruto do trabalho desenvolvido nessas "oficinas".

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