quinta-feira, 5 de agosto de 2010

MÁ-HORA (continuação)


A porta do gabinete estava aberta. Quando Cátia Vanessa se aproximou, viu Manuel Cá de costas, sentado em frente da secretária, braços assentes nas pernas e o queixo no peito. Imaginou-o deprimido ou envergonhado, mas dormia.
Foi ela quem o acordou. Leu-lhe a acusação. Depois ouviu-o:
"Eles eram companheiros desde há cerca de três anos. Não têm filhos em comum. Ela partiu para Inglaterra há dois anos, deixando os seus quatro filhos com ele (Paulo, Manuel, Fábio e Jessica, a mais nova). Ele, no Inverno, deitava a menina consigo. A acusação não é verdadeira. O que ela pretende é ficar com a casa que lhe foi atribuída (ainda não viviam juntos) aquando da destruição do bairro de lata em que vivia. Ela foi expulsa de Inglaterra porque falsificava documentos de identificação. Ela actualmente tem um amante. Há cerca de um mês, enquanto dormia, ela deu-lhe com uma marreta no braço direito. Ele até deixou de conseguir trabalhar. Depois, foi levado por ela e pelo amante e abandonado inanimado. Até que acordou e passou a viver na rua, nos bancos do Jardim Constantino."
No final, Manuel estendeu o braço direito (o antebraço, deformado, fez lembrar a Cátia um boomerang) e entregou um bilhete de identidade da ex-companheira: o nome não coincidia com a identificação constante da acusação.
Despediram-se até ao julgamento.

À chamada responderam todos os notificados, com excepção do irmão Manuel (com gripe), indicado, à semelhança de todos os demais irmãos e da mãe, como testemunha.
O triunvirato que compunha o Juízo e a representante do Ministério Público eram famosos na Boa-Hora e tinham adquirido recentemente uma grande projecção mediática, por via da intervenção em processos envolvendo personalidades públicas e políticas.
A audiência decorreu à porta fechada - os reformados apostadores de absolvições, condenações e medidas concretas da pena tiveram de se retirar, depois do julgamento antecedente.
A Juíz-Presidente despiu a beca, desceu e aproximou-se da pequena Jessica. Brincou com ela e os outros actores assistiram em anfiteatro. Brincou e perguntou:
"Gostas do Manel? O Manel é teu amigo? O Manel brincava contigo, quando a mamã não estava cá? Dormias com o Manel? O Manel mexia-te nas pernas? E aqui?"
Às duas últimas perguntas a menina respondeu "não". A todas as outras respondeu "sim".
Passou-se à audição das testemunhas, começando pela mãe:
"Quando chegou de Inglaterra (passado mais de um ano), havia reparado, quando dava banho à menina, que ela se tocava. Perguntou-lhe por que fazia aquilo. Quem te ensinou a fazer isso? Ao que ela respondera que fora o pai."
Um dos asas disse: "Minha senhora: eu tenho duas filhas: uma um pouco mais velha que a sua filha; outra um pouco mais nova. E elas também fazem o mesmo. Isso é perfeitamente normal."
Quando chegou a sua vez, Cátia Vanessa não resistiu e, tentando descredibilizar a testemunha, começou:
- Como é que senhora se chama?
- Maria da Conceição Fernandes.
- Então quem é esta Daniela? - questionou Cátia Vanessa, empunhando o bilhete de identidade que Manuel lhe havia entregado.
Quanto às restantes testemunhas, Fábio nada disse que fizesse pender a balança para um ou outro lado.
Apenas Paulo, perguntado sobre sobre se dera por alguma coisa, respondeu que só ouvira falar do assunto depois do regresso da mãe de Inglaterra: sentiu-se na sala que foi a machadada final.
A representante do Ministério Público pediu a absolvição.
Cátia Vanessa, pela primeira vez, não se limitou a pedir justiça e disse fazer suas as palavras da representante do Ministério Público.
O tribunal absolveu o arguido.

Hoje, dez anos depois, desconheço o futuro (hoje passado) de quase todas as personagens: apenas sei, pelos media, que a representante do Ministério Público e dois dos juízes ocuparam posteriormente cargos de nomeação política e, actualmente, encontram-se no Tribunal da Relação de Lisboa.

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