segunda-feira, 1 de maio de 2017

UMA ABELHA NA CHUVA









Foi o meu segundo romance; no 9.º ano; em 1979/80.
A partir daí, Carlos de Oliveira é um dos meus escritores.




Carlos de Oliveira faleceu com quase 60 anos, em 1 de julho de 1981. 
A sua obra são quatro romances - Casa na Duna (1943), Pequenos Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953) e Finisterra, Paisagem e Povoamento (1978) -, vários livros de poesia reunidos no final num único livro - Trabalho Poético (1976) - e um conjunto de crónicas e artigos compilados em O Aprendiz de Feiticeiro (1971).
O seu trabalho literário foi porém muito mais intenso do que a colheita aparenta. Carlos de Oliveira reescrevia  permanentemente os seus livros, os quais conheceram, por vezes, consideráveis alterações nas sucessivas edições.
Em O Aprendiz de Feiticeiro (1971), pode ler-se:
"Nós, escritores, trabalhamos com palavras. Não nos é lícito ignorar que podem ser uma arma de força terrível ou terrivelmente frágeis. Podem apoucar as verdades ou revelar-lhes os gumes mais finos e luminosos. O nosso ofício consiste em escolher as palavras, utilizá-las no momento exacto, atenuá-las, engrandecê-las, dominá-las. E o que são as palavras? Língua, linguagem, povo, oralidade, escrita, herança literária. A reestruturação da técnica narrativa ou poética tem de conhecer até ao pormenor a matéria de que se serve. Ou então a literatura é uma batata."  


Li Uma Abelha na Chuva mais três vezes, a última em janeiro.
Simplificando, diria que é uma "tragédia neo-realista": nela se conjugam elementos da tragédia, definidos por Aristóteles na Poética (século IV a.C.), com algumas das características do movimento neo-realista (século XX), embora Carlos de Oliveira tenha transcendido este movimento.

Transcrevo algumas passagens do romance, bem ilustrativas da beleza da escrita de Carlos de Oliveira:

"Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passo molengão; samarra com gola de rapousa; chapéu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empredrado. Tinha o seu quê de invulgar: o peso do tronco roliço arqueava-lhe as pernas, fazia-o bambolear como os patos: dava a impressão de aluir a cada passo. A respiração alterosa dificultava-lhe a marcha . Mesmo assim, galgara duas léguas de barrancos, lama, invernia. Grave assunto o trouxera decerto, penando nos atalhos gandareses, por aquele tempo dasabrido.
Havia sobre a vila, ao redor de todo o horizonte, um halo de luz branca que parecia o rebordo duma grande concha escurecendo gradualmente para o centro até se condensar num côncavo alto e tempestuoso. Ameaçava chover. O vento ia descoalhando as nuvens e abria caminho à grossa chuvada que a tarde esperava.
(...)
Fez-se o casamento no Montouro. Conseguia recordar ainda com uma agudeza incrível a onda de sentimentos contraditórios que a arrastara vagarosamente ao altar, a amarga obediência aos pais e o desejo de os ajudar, a curiosidade e o medo, o medo e um pouco de esperança; avançava pelo braço do pai, toda de branco, entre um múrmúrio de órgão e vozes sussuradas; sorria, mas dentro de si ia nascendo um grito, um grito sempre reprimido; a chuva caía, caía com certeza, no passado e agora.
(...)
Levantou-se e tomou o caminho de casa. Na lama onde ia afundando os passos fermentavam as folhas caídas de outubro, oiro conspurcado que os vermes devoravam. Sentiu um arrepio à ideia do seu corpo num desamparo, numa miséria daquelas.
À superfície da madrugada iam correndo sons ligeiros, apenas pressentidos. O distender imperceptível das plantas aliviadas do orvalho, o frémito leve de mil e um movimentos ignotos. A vida ínfima acordava. Depois, principiou o restolho fugidio dos coelhos no tojo, o primeiro e breve alvoroço das asas. Os galos cantavam já soprando a última névoa do amanhecer. Pela aldeia floria o rumor humano, de mistura com o fumo dos lares e o cheiro dos currais abertos. O dia chegava por fim. Olhando para tudo, entrevia apenas no palpitar da terra a intimidade decomposta, os sinais da destruição.
(...)
O reflexo trémulo das chamas batia-lhes no rosto e defigurava-os: os olhos do padre muito mais encovados, a cana do nariz mais torta e luzidia; as bochechas da D. Violante inchadas como se tivesse a boca cheia de ar; uma recôndita sensualidade nos lábios de D. Maria dos Prazeres; a palidez de Álvaro Silvestre a resvalar num amarelo de cidra e idiotia. A D. Cláudia, não: incorruptível, pura, a mesma; não lhe toca o lume (nem a sombra) que os deforma e se ela, alma de mel translúcido, escapa ao sortilégio é que a alma dos outros não tem a mesma transparência.
À primeira vista, o gosto da razão científica tão arreigado no seu espírito não se coadunava muito com deduções desta natureza. No entanto, pensando melhor, tais juízos partiam de argumentos alicerçados no real: manias, doenças, tiques psicológicos e morais, etc. Não eram construções à toa. De maneira nenhuma. Podia bem deduzir o seguinte sem se atraiçoar: vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros; todos eles fabricam fel; abelhas cegas, obcecadas.
(...)
A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas."


Trata-se de um romance com o qual dialogaram outras obras posteriores: não pude deixar de pensar nele quando li O Delfim (1968), de José Cardoso Pires, e A Sala Magenta (2008), de Mário de Carvalho.
Curiosamente, Fernando Lopes adaptou ao cinema Uma Abelha na Chuva e O Delfim.

Recomendo, a propósito, o seguinte programa, editado pela RTP:

http://ensina.rtp.pt/artigo/uma-abelha-na-chuva-de-carlos-de-oliveira/

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